7 de junho de 2011

Sentindo saudades

Em anos, passam meses. Em meses, passam semanas. Em semanas, passam dias. Em dias, passam horas. Em horas, passam minutos. Em minutos, aqui estou eu sentindo saudades do meu irmão. Ainda assim, nenhum sentimento de falta pode ser porta para voltar à depressão dos primeiros tempos com a ausência dele. Mas é meu irmão, sangue circulado no mesmo útero, brincadeiras e brigas ocasionadas comumente. Ah! Como preenche o peito as lembranças de ter um irmão e saber que em todos os dias de desentendimento, havia reconciliação natural. Discrepância intensa para o ocorrido entre casais e, até, entre amigos. Talvez fosse preciso, vez por outra, chegar envergonhada até ele e pedir desculpas, abraçá-lo e receber o gesto de fraternidade meio encabulado, também. Mas brigávamos. Mas nos detestávamos com todo o amor. Eu o amava e amo; não é à toa que um pequeno bilhete com uma frase que carrega essa mensagem ainda é colado na parte interna de seu guarda-roupa.
Ele se foi sem nunca me desejar parabéns. Ele se foi sem dar adeus, como talvez quisesse no momento do impacto que o lançou em frente ao muro que hoje traz uma cruz acompanhada de uma mensagem pintada com seu nome. Azar ou sorte do destino, eu não creio nisso. A vida é instável e reserva surpresas. A minha surpresa foi me enxergar num local repentinamente escuro e sem a aparência de um chão ao ouvir minha avó anunciar "Maria, não vamos viajar, porque Preto morreu". Ela só podia estar de brincadeira. Preto? Ele já havia sofrido os mais diversos acidentes naquela moto e sorria depois por se livrar com tamanha esperteza. Preto, que manjava todos os mecanismos de velocidade com auto-segurança? Não podia ser possível, e eu não iria chorar. Mas ligar para meu pai, perceber os gritos em casa e ouvir "seu irmão, minha filha, Deus levou" só me induziu ao desespero de jogar o telefone contra a parede e desejar ter ido no lugar dele. Recordei o fato de, se eu não tivesse amigos para brincar, eu tinha um irmão para encher o saco e ser enchida. Nunca foi justa a sua partida... Até que surge a conformação e é esperado que ele não tenha sofrido tanto. Conquanto, a sua imagem no caixão era de braços, pernas, dentes, pescoço quebrados. Aquele sorriso incrivelmente bonito e explícito estava frio sob uma boca - "boca de jumento" - que não mais se movia. Seu rosto trazia cortes. Seu rosto carregava o fim da vida. Chega de dor.
Eu sei que todos dizem que aquela pessoa morta era magnífica, única. Todo morto vira santo. O meu irmão não. Viveu errando, morreu errando. E é justamente o fato de ele ter sido apenas humano que o torna diferente, pois conseguia se destacar entre pessoas que se conformavam com dias comuns. Meu irmão estudou e detestava a vida de estudante, ensinou-me a andar de bicicleta e ria a cada vez que eu caía, quebrou minhas bicicletas, reformou as dele, desistiu dos estudos e foi sincero com minha mãe, trabalhou em alguns lugares, foi um vagabundo por anos, foi assaltado e reencontrou o celular após mobilizar todos os moradores da rua, alistou-se e serviu à Aeronáutica, comprou uma moto, comprou um carro e logo o vendeu, foi a todos os lugares que queria, fez trilhas, descobriu maravilhas da natureza escondidas no Rio Grande do Norte, traiu minha cunhada, amou minha cunhada, xingou quando sentiu vontade, esbanjou felicidade a cada entrada e saída de casa, comprou uma casa e, poucos dias depois, tudo ficou para trás, uma vez que ele não pôde dar continuidade.
Minha vida nunca mais foi a mesma depois de sua ida sem volta. Eu queria - e quero - ouvir seus gritos de chegada, o barulho irritante de sua moto, mas meus ouvidos só captavam o silêncio dos meus desejos. Eu queria poder dar uns tapas em suas costas, puxar seus cabelos, inventar músicas com seus apelidos, abraçá-lo só mais uma vez. Eu queria, ainda, ter o direito de encontrar fisicamente meu irmão, como tantas outras pessoas têm. Se as coisas durassem para sempre, você saberia o valor que elas têm? E, hoje, ele poderia estar esperando, como eu, a chegada de nosso sobrinho. Nunca fui muito normal para com crianças - creio que é por isso que elas devem gostar de minha companhia - e ele só me ajudaria a tornar os dias do Phillip mais divertidos. Em pouco tempo, teríamos um novo Pretinho na família. Mas ele não está aqui, e é por isso que nosso sobrinho terá seu segundo nome. Andrews. Eu espero que, onde quer que ele esteja - ou não esteja -, possa haver olhos que o façam enxergar todas as mudanças em nossa família e compartilhar, de alguma forma que desconheço, a nossa felicidade, pois, corra o tempo, mudem os espaços, Weslley Andrews há de ser o irmão encrequeiro que faz falta a mim e à minha irmã, o filho desobediente a uma mãe que lhe ajudava no que fosse (im)possível, o órfão que encontrou sossego no coração com o meu pai, o primo e sobrinho extremamente contente e que adorava um fim de semana alcoólico, o quase-marido de uma mulher que nunca soube dar adeus e amigos de inúmeras pessoas que, até hoje, não entendem o motivo de sua morte. Mais que todas as características citadas, ele é o Preto. E só por esse apelido dado, ao nascer, por seu pai biológico, as pessoas que o conheciam já sabem a quem me refiro. 
Que saudade, "Boca".

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